1984 de George Orwell nas cidades do interior do Brasil
Sim, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, bem como constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político e todo esse sistema emana do povo, que, obviamente, o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.
Esse
trecho inicial não foi tirado de nenhum livro de ficção, é uma passagem fiel da
nossa Carta Magna. Um desenho fiel de seu artigo primeiro.
Se
começássemos a pensar nossa república da base, teríamos uma união indissolúvel
de “municípios, Estados e Distrito Federal”. O Brasil tem hoje 5.568
municípios, são miniestados onde nem sempre o sistema democrático reina, mas
apesar de ser uma realidade bastante conhecida, pouco se encontra na literatura
jurídica sobre as “crises democráticas” da maioria das cidades do interior e as
violações frequentes feitas à Constituição.
Poderíamos
iniciar nossa análise dizendo que: “era uma vez um povo que vivia sob a égide
de um governo opressor e desumano, onde as pessoas não possuem plena liberdade
de expressão, são constantemente vigiadas, vivem para obedecerem e serem fiéis
ao partido que detém o poder”. Essa é a realidade do livro 1984 do jornalista,
crítico e escritor George Orwell, mas é também a realidade de municípios do
interior do Brasil que burlam nossa constituição e estabelecem sistemas de
controle e de poder que perduram por gerações.
Em
sistemas descritos como totalitários ou ditatoriais, sempre veremos a liberdade
de expressão ser o primeiro direito tolhido. O impedimento do trânsito de
ideias deixa o cidadão em um limbo, onde as alternativas de linhas de
pensamento, de pontos de vista e informações são limitadas àquelas propagadas feitas
pelo seu governo. Cidades pequenas geralmente têm dois partidos: o que está no
poder (situação) e o que não está no poder (oposição), esse último normalmente
aparece apenas em época eleitoral.
O
livro 1984 é um dos cânones da literatura universal, especialmente no que
concerne à distopia (antítese da utopia) e descrição do totalitarismo, bem como
ferramentas de controle social utilizadas por governos antidemocráticos. Orwell
é extremamente atual e pode ser usado como “chave hermenêutica” em diversos
contextos. Aqui vou apontar algumas correlações feitas entre sua obra 1984
(publicado em 1949) e as cidades do interior do nosso país.
Na
referida obra owerlliana (1984), existe uma nação controlada por um partido que
tem absoluto controle sobre tudo e todos. Existe a “polícia do pensamento”, em
que os cidadãos são estimulados a vigiarem e delatarem os outros, microfones
ocultos, uso da “teletela”, aparelho de televisão que transmite o tempo todo a
propaganda do governo, cartazes e propaganda com a imagem do “Grande Irmão”,
líder do partido.
Na
maioria das cidades do interior temos um prefeito (Grande Irmão) que exerce
controle sobre seu partido, centraliza o poder por meio da prefeitura (muitas
vezes, a única fonte de emprego), cabos eleitorais normalmente são empregados
como comissionados e apontam “quem é contra” ao prefeito e seu partido,
exercendo o papel de delatores que, através de pressão psicológica, empurram os
cidadãos para a espiral do silêncio, tolhendo sua liberdade de expressão. Toda
obra pública é uma propaganda eleitoral para o “grande irmão”, um palanque, e
em cada estabelecimento público haverá de ter uma foto do prefeito: UBS, Postos
de Saúde, escolas, creches etc., pois é, o Grande irmão está de olho em você.
Na
cidade de Panelas, no interior de Pernambuco, por exemplo, praticamente todos
os departamentos públicos contêm uma foto do prefeito, a cidade passou mais de
20 anos sem ter concurso público, ainda que seja uma previsão constitucional
(art.37 CF), e somente em 2023 fez a primeira seleção simplificada da sua
história.
Nossa
Constituição proíbe a propaganda governamental como promoção política e a
utilização de cargos públicos como cabides eleitorais, mas estamos falando de
municípios e, muitas vezes, esses têm suas próprias regras (é o que parece). A
igualdade de oportunidades, princípio da impessoalidade, direito a isonomia
etc., esqueça! Isso é coisa para cidades grandes (e olhe lá!). Para os nossos
miniestados totalitários essas coisas não existem.
A
“novilíngua” é uma língua própria criada para atribuir sentidos contrários às
expressões com vistas a manipular e controlar os membros da sociedade, em
Orwell isso fica bem desenhado no lema do partido “Guerra é paz; Liberdade é
Escravidão; Ignorância é Força”. Nas cidades do interior seria algo como: “Bebedeira
é cultura, Concurso Público é desemprego, política é festa e se estudar muito
fica doido”. Tanto na obra 1984, quanto nas cidades do interior, nota-se o
processo de manipulação linguística.
Se
você é de uma cidade do interior e não se identificou com a passagem anterior
da “novilíngua”, então espere até você entender o “duplipensar”, que nada mais
é do que “usar a fraude consciente enquanto conserva a firmeza de propósito que
acompanha a completa honestidade”; dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar
piamente; negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade
que se nega”.
Lembra
da cidade de Panelas-PE supracitada? Então, o vereador que denunciou contratos
temporários ilegais foi ameaçado de morte e duramente criticado pelas mesmas
pessoas que posteriormente fizeram a prova e comemoraram a aprovação, Orwell
diria em sua obra 1984 que isso é o “duplipensar”, mas isso aconteceu na vida
real em pleno 2023.
Se
criticar o governo é algo plenamente aceitável numa democracia saudável (vedado
o anonimato, claro) falar mal do prefeito é algo grave na cidade (já virou
meme). Pode chamar isso de “crimideia”. O crime do pensamento. Nas cidades
pequenas os grupos minoritários geralmente chamados de “oposição” são, em
muitos aspectos, tratados como escória, afastados como leprosos, pois a ideia é
diminuir a possibilidade de diálogo e a livre circulação de ideias.
O
livro de Orwell, termina com Winston, personagem central da obra, declarando
amor ao Grande irmão. Aposto que na sua cidade, caro leitor, já teve gente da
oposição com lágrimas nos olhos fazendo a mesma coisa. Talvez aí esteja uma
grande diferença da nossa república para a obra. Em 1984 o grande irmão
consegue essa declaração com tortura, nas cidades do interior isso se consegue
com ameaças ou dinheiro.
A
narrativa orwelliana aponta para um sistema que se encaixa perfeitamente aos
sistemas de muitas cidades do interior, com apenas algumas variações sucintas.
Se na narrativa de 1984 o partido exerce seu poder de dominação manipulando a
informação, nas cidades interioranas se usa a ignorância. Enquanto na obra o
partido manipula a informação, reescrevendo a história, os livros e jornais,
nas cidades pequenas apenas se ignora, como por exemplo, não investindo em
pesquisas sobre a história local e levando o povo ao desconhecimento de suas
próprias raízes. O emprego de mentiras como principal política de governo é
regra e, quanto menor e mais afastada é a cidade, mais se parece com a obra em
tela.
A
obra de Orwell é bastante atual, traz frêmitos, instiga a reflexão sobre a
nossa própria realidade, introduz-nos a leituras políticas, filosóficas,
sociológicas, psicológicas etc., e diz muito sobre a natureza do governo
totalitário e nossa fragilidade diante dos instrumentos de controle social.
O
totalitarismo nas cidades do interior desponta como um obstáculo, não só para a
democracia jovem e já bastante fragilizada, mas também para o desenvolvimento
econômico e social do nosso país. Se considerarmos que os municípios são as
menores partes do nosso país e que estão, em sua maioria, fragilizadas por
interesses pessoais, oligarquias e caudilho, saberemos que temos um grande
problema para resolver e leviatãs para enfrentar em várias frentes.
Enquanto
ignorarmos esses resquícios caudilhescos, onde ainda existem votos de cabrestos
e aceita-se o descumprimento da Constituição Federal, não construiremos uma
sociedade livre, justa e solidária. É necessário moralizar os municípios
através de fiscalizações rígidas, especialmente no que concerne aos ataques
frequentes à liberdade de expressão, trânsito de ideias, livre debate, para que
o poder possa verdadeiramente emanar do povo e contra o povo pare de ser
exercido.
REFERÊNCIAS
ORWELL,
George 1984. Tradutores: Heloisa Jahn, Alexandre Hubner;
ANDRADE,
André Gustavo Corrêa. Artigo 1984. O que os grandes livros ensinam sobre
justiça.
NOELLE-NEUMANN,
Elisabeth. A Espiral do Silêncio. Opinião Pública: Nosso Tecido Social. Editora
Estudos Nacionais, 2019.
Link:
https://panelaspernambuco.com.br/panelas-em-1984
Link:
https://www.blogwillamarjunior.com.br/2022/05/prefeitura-de-panelas-podera-demitir.html
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Pierre
Logan, Advogado, graduado em filosofia e pós-graduado em Direito Penal, perícia
criminal e medicina legal. Fundador do Instituto Cultural Paideia e vereador no
município de Panelas 2021/2024.
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